sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

A PRÁCTICA DAS ARTES MARCIAIS

O DESENVOLVIMENTO PSICOMOTOR E SUA INFLUÊNCIA NO COMPORTAMENTO

Albano Pedro

(Texto publicado no Jornal de Angola, suplemento Vida Cultural)

Por artes marciais entende-se o conjunto de técnicas coordenadas com vista ao domínio das habilidades físicas e psíquicas que proporcionam a capacidade de defesa pessoal ao seu praticante. A sua origem mais identificada com o étimo da palavra deveu-se efectivamente as guerras travadas entre os povos, ao longo da evolução histórica do extremo oriente. Conta-se que há milhares de anos A.C um monge terá feito uma peregrinação da índia para china com vista apregoar ensinamentos religioso e que ao longo de jornada terá feito uso de uma forma de luta para se defender dos assaltantes então conhecida como Ken Fat que se popularizou entre os seus discípulos vindo a evoluir para o Kung Fu (que quer dizer o caminho das mãos vazias) significado este que veio a identificar os seus equivalentes japonês (Karaté-Do) e coreano (Tang Soo Do). A partir do primitivo Ken Fat os povos da China, Coreia e Japão terão desenvolvido vários sistemas de combate corpo-a-corpo que sobreviveram aos dias de hoje sob várias formas de expressão. Modernamente contam-se mais de um milhão de artes marciais em geral agrupados em sistemas. Só o Kung Fu (sistema de artes marciais chinesas conhecido por ter sido praticado e desenvolvido pelo lendário Bruce Lee) comporta mais de 300 estilos de artes marciais, o karaté-do como um dos sistemas de artes marciais mais populares integra estilos como Shotokan, Goju-ryu, Shito-ryu, Wado-ryu, etc. Os próprios americanos evoluíram do karaté-do estilos livres como o Full Contact, Street Fight, etc.

Existem já muitos sistemas de artes marciais pelo mundo como a Capoeira (Angola e Brasil), Savaté (França), Muai Thai (Tailândia), Full Contact (Estados Unidos da América), etc. Contudo, os sistemas de artes marciais mais populares concentram-se na China (Kung Fu, Tai Chin Chua entre outras), Coreia (Taekwondo, Hapkido, Tang Soo Do, Kempo, Taekywon, etc) e Japão (Judo, Jiu-jitsu, Aikijiujitsu, Aikido, Karaté-do, Kendo, Ninjitsu, etc.). O Japão pela supremacia militar que teve em relação aos outros dois países aos quais ocupou por longos períodos é o que mais sistema de artes marciais desenvolveu sendo o Karaté-do (fundado por Funakoshi sensei identificado posteriormente pelo estilo Shotokan muito popular em Angola) e o Judo os mais conhecidos no mundo. Alguns estilos foram desenvolvidos para atender a fragilidade dos seus praticantes (caso do Judo sistematizado por Jigoro Kanu ou Aikido fundado por Muriei Ueshiba), outros foram desenvolvidos para defesa contra a subjugação dos senhores feudais como o Nunchaku (famosa matraca), Tonfa (forma de porrete com pega perpendicular utilizado modernamente pela polícia) entre outros sistemas de artes marciais que implicam a utilização de instrumentos geralmente agrícolas introduzidos pelos simples camponeses que se viam na necessidade de protegerem os seus pertences contra invasões, outras ainda desenvolvidas para o desenvolvimento espiritual, caso de Tai Chin Chua, a Maginata entre outras.

Com a descoberta de pólvora e o aperfeiçoamento das armas de guerra, a maioria das artes marciais foram perdendo importância no plano militar. Hoje a verdadeira arte marcial é a arte da guerra por utilização de armas de fogo desenvolvida pelas forças armadas. Sendo as restantes legadas a categoria de desportos de combate com vista ao desenvolvimento físico e psíquico do homem. Diferem-se em geral das artes ou desportos de luta (como o Boxe, a Luta livre, o Greco-Romano, etc.) por estes não envolverem a elevação espiritual que os praticantes das artes marciais atingem. Não espanta que a provocação e a insuflação do rancor e ódio pelo adversário que resulta em vitória do atleta rancoroso no Boxe não tenha qualquer êxito no taekwondo, karaté-do, kung-fu, hapkido, judo ou jiu-jitsu por exigir nesta a máxima concentração possível apenas com a serenidade do espírito.

Ao contrário do que se vulgariza, a prática das artes marciais desenvolve a capacidade de se estar calmo mesmo em situações de extrema ameaça ou de grande perturbação. Só um praticante adestrado ou mestre de artes pode esboçar um sorriso de calma transpondo benevolência e suavidade de espírito diante de um bando de assaltantes procurando tomar os seus haveres. A violência é gerada pelo medo e este pela falta de segurança individual. Um ambiente de medo é um ambiente potencialmente violento. Quanto mais se combate a violência com meios violentos mais ela aumenta. Já o versículo bíblico previu “quem com a espada matar com a espada morrerá”. A esposa constantemente espancada desenvolve uma “alergia” natural a qualquer forma de persuasão do esposo, por isso quanto mais se espanca o filho ou a esposa menos disciplinados se tornam diante as ordem do pai ou esposo. Eis a psicologia básica da violência combatida pelo artista marcial com a serenidade do espírito. Por isso, a alma violenta pela tensão do medo e instabilidade psicológica, relaxa ante a segurança alcançada pelo domínio das técnicas de defesa pessoal, da capacidade de auto-protecção Vem daí, a auto-determinação, espírito indomável, preserverança, auto-domínio entre outros valores que estruturam o espírito do praticante de artes marciais. É falsa a ideia de que o praticante de artes marciais é violento. Essa ideia é veiculada pela acção de indivíduos que não atingiram o grau de elevação espiritual exigido aos mestres das artes marciais. Pois se é fácil vermos um graduado inferior (cinturão amarelo, verde ou azul) aos pontapés na rua é devido a factores emocionais próprios da falta de maturidade. É por isso, que não nos é fácil ver um cinturão negro em rixas sem causa justificável aparente. O praticante de artes marciais é ensinado a defender-se e não a agredir. E certas escolas, o praticante que luta na rua é castigado com a severidade máxima e de um modo geral os mestres dos sistemas de artes marciais são intolerantes com os praticantes arruaceiros. Mas entende-se, ser a fase da arruaça um período de transição para a fase “adulta” do praticante de artes marciais em que descobre a capacidade e habilidade técnica atingida vindo depois a fase da consciência letal dos golpes que domina e o perigo social que representa em caso de uso indevido das habilidades técnicas. Esta última fase é atingida a partir da graduação média-superior (cinturões vermelhos ou castanhos conforme arte marcial praticada). A partir do 1º Dan (nível de cinturões negros) a maturidade é incontestável. Os níveis entre o 4º Dan e 6º Dan são mundialmente reservados a categoria de instrutores superiores também conhecidos como Mestres e os níveis entre o 7º Dan e 9º Dan reservado aos Grande Mestres, como autoridades mundiais máximas na propagação das artes marciais. Em geral o 10º Dan é dado a título honorífico a uma única individualidade viva, normalmente regente mundial da arte marcial em causa.


A prática das artes marciais é recomendada a partir da mais tenra idade. Desde os 3 anos o homem tem toda a vida para praticar artes marciais, pois não há reforma na elevação do espírito. Todas as crianças, sobretudo as traquinas e irrequietas, devem praticar artes marciais para desviarem a instabilidade psicológica ao treino metódico e disciplinado, compreenderem as emoções durante o crescimento, se prevenirem dos conflitos psicológicos e turbulências da adolescência pelo controlo do medo e acostumarem-se a disciplina e a ordem social no lar, na escola, na comunidade e no curso da própria vida. O treino nas artes marciais confere o espírito autónomo necessário para o empreendedorismo e sucesso profissional. Acostumado a vida austera do treino duro e orientado a descoberta das mais profundas capacidades físicas, o artista marcial não tem dificuldades em sobreviver em selvas estando perdido ou em ambientes que implicam habilidades especiais ou esforços físicos anormais como em situações de calamidade, desordem generalizada, guerras, etc. As crianças e adolescentes teriam melhor preparação para a prática de outros desportos e sobretudo para o treino militar se desde cedo os pais os incentivassem na prática das artes marciais. Não é por acaso que na China, Coreia e Japão a prática das artes marciais chega a ser obrigatória para todas as crianças integradas no sistema de ensino. Não sabem o quanto debilitam os filhos com a falta de educação física e mental, os pais que afastam, os filhos desta prática quando ligam as artes marciais ao puro treino para a violência. Os próprios pais, assolados pelo stress diário, pelas irregularidades das economias e pela insegurança do lar ou da sociedade devem praticar artes marciais a ver se recuperam a auto-confiança. Não há idade na prática das artes marciais. Aliás mais se envelhece mais profundo se é na prática das artes marciais, por isso a partir de determinados níveis de cinturão negro a graduação só é permitida mediante o alcance de determinada idade, sendo que a partir do 7º Dan apenas os indivíduos com idade superior a 50 anos de idade podem ter acesso. Alguns desportos como o futebol, basquetebol entre outros não permitem tanta façanha por exigir muito esforço dos seus praticantes. Porém, o artista marcial é ensinado a economizar as suas energias para a longevidade.

Modernamente, as artes marciais, com excepção do Kung Fu, são também praticadas como desporto, havendo vários campeonatos em todo mundo. Todos os anos milhares de atletas em todo mundo conquistam medalhas e prémios. Apenas o Taekwondo e o Judo são consideradas artes marciais olímpicas (representadas nos jogos olímpicos) por serem praticadas por mais de 200 milhões de atletas em todo o mundo. O Karaté-do que também é praticado por larga maioria acima de centenas de milhões não é olímpico por comportar vários estilos, não sendo por isso mundialmente uniformizado como acontece com aquelas artes marciais.

Em Angola temos o Karaté-do, Taekwondo e Judo. Outras artes marciais como Jiu-Jitsu, Kung Fu, Capoeira, etc. vão firmando a sua presença entre os praticantes e entusiastas das artes marciais. Apesar disso o número de praticantes de tão ínfimo não justifica a importância desta prática. Provavelmente a falta de demonstrações públicas e a ausência de informação regular na comunicação social sejam as causas principais desta realidade. Não é de estranhar que os praticantes de artes marciais sejam em geral associados a vagabundos com vocação para malfeitores. Em Angola o Taekwondo conta com mais de 60 cinturões negros (sendo dois graduados a 5º Dan, quatro a 4º Dan, quatro a 3º Dan e os restantes repartidos entre 1º e 2º Dan) e centenas de atletas e praticantes diversos oficialmente controlados pela Federação Angolana de Taekwondo.

PARA UM EXAME SOBRE A IMPOSSIBILIDADE METÁFISICA DO ETONISMO

Sobre o argumentário lógico na réplica de Patrício Batsíkama

Albano Pedro

(Segundo texto em torno do Etonismo publicado no Jornal de Angola, suplemento Vida Cultural)

Recebi com fino agrado a réplica de Patrício Batsíkama, publicada neste jornal, a propósito do meu discurso sobre a impossibilidade metafísica da obra plástica de Tomás Ana “Etona”. Há muito esperei, como de resto esperam os intelectuais da minha geração, debates desapaixonados e cientificamente sustentados, não tanto para ensaiar os famosos círculos intelectuais que animaram as correntes filosóficas ocidentais do período iluminista, mas para projectar uma nova cultura discursiva digna de agentes de correntes de pensamento multiformes.

Entretanto, mergulha-me num mar de confusão. Primeiro, agradece a minha abordagem filosófica e depois diz que não entendo nada de filosofia de Arte. Adianta dizendo que me falta “juízo científico” o que me confunde ainda mais ao ponto de já não ter ideia clara se a abordagem é filosófica ou científica. Avança que não entendo de lógica argumentativa quando essa falta é manifesta na sua réplica repleta por isso de contradição. Não tenho domínio dos fundamentos – metódica – da filosofia? Quem, para além de si, está a confundir causa ou nomenon – absoluto (Hegel), mónada (Leibnitz) ou sub estante (Baruch Spinosa) – enquanto objecto próprio da metafísica, com o efeito ou Phenomenon entendido como o móbil da ciência? Já reparou que quando recorta a Tolerância (nomenon) em tolerância indo-europeia e tolerância etoniana (eventualmente africana) submetendo-a a exposição circunstancial infra-temporal, está a transportar a sua pretensa filosofia para o terreno da ciência? É um problema de epistemologia cuja ignorância o obriga a visitar importantes mestres universais, alguns dos quais, faustamente citou sem os compreender na essência. O cúmulo da contradição se expõe quando confunde arte com ciência; quando nega os fundamentos ocidentais do seu etonismo apesar de se sustentar da teoria de autores ocidentais ou mais grave ainda, quando não consegue se “desmamar” dos seus mestres ao defender a sua corrente de pensamento que deseja inovadora. Pretende confundir sua tentativa de avaliação ética da obra plástica de Etona com Filosofia de Arte? Francamente!

Com toda a retórica capacitada pela visão emotiva do fenómeno artístico que sustenta, entremeada por verborreia gratuita, duas constatações posso decantar do seu discurso: Primeiro, que tem procurado forçar uma enxertia dos seus conceitos de filosofia sobre a obra de Tomás Ana “Etona” por um visível clientelismo e oportunismo não justificados; Segundo, que regista um gravoso défice de conhecimento sobre a historiografia artiplástica angolana do pós-independência. Por isso, sua réplica labuta em terreno lógico de características pantanosas usando duas charruas despropositadas para a lavoura que pretende. A primeira é não ter percebido do momento fulcral da minha constatação – pretendi que a Arte de Etona não desencadeia corrente filosófica nenhuma, sendo certo que um sentimento político (de matriz circunstancial e reaccionária) é o mais apropriado para caracterizar tal pretensão. Segundo, a minha avaliação, embora recheada de argumentos plasticográficos, nunca foi orientada na perspectiva estética (nem é esta a minha especialidade em matéria de crítica de arte – de resto se tem lido os meus textos de crítica sobre o seu confrade Etona será esta a suma constatação). E é sobre estas duas constatações que esperei sua “adulta” contribuição discursiva, certo de que o exercício da crítica nunca deve retira-nos da seriedade analítica inspirada pela imparcialidade e pela honestidade.

A incapacidade para a constatação lógica do meu argumentário está em que, Patrício Batsíkama é um estudioso que, vindo de uma valiosa passeata pelo mundo do conhecimento, pretendeu plantar um movimento filosófico nas artes plásticas angolanas com a incúria de não examinar a realidade criativa ao ponto de se perder nas persuasões clientelistas de um artista de resto muito sagaz em matéria de relações comerciais como Etona. Identificou, com erro e paixão, o terreno em que podia plantar e fazer nascer sua promissora carreira como filósofo de arte. Percebe-se, mesmo com a engenharia verborreica que utiliza, que sua filosofia se perdeu num discurso elogioso sobre uma arte incapaz de representar uma imagem constante de si mesma. Teve ainda a aura gloriosa de se achar no meio de reles mortais (entre ignorantes e incapacitados) no domínio das artes e da própria filosofia. Não estranha que o próprio Etona tenha dificuldades de entender a filosofia que sustenta a sua arte e por isso, se tenha constituído seu discípulo para um aprendizado impossível.

Se implanta in limine com a ideia de que o etonismo é uma corrente de tal ordem revolucionária que merece enquadramento académico nos curriculum escolares do mundo, quando é certo que o ocidente está de tal modo desgastado pela recorrência aos modelos clássicos que não perde tempo em consumir sofregamente qualquer material exterior a sua realidade mesmo que a qualidade não seja apelável. Saiba que muito material de qualidade filosófica e artística se perde amarelecido no espírito dos africanos por nunca terem sido expostos ao mercado cultural ocidental. Não se apercebe disso nos domínios da música, dança, teatro, literatura e até mesmo das artes plásticas? Por isso, não se perca com a vaidade de pretender o etonismo como uma verdadeira invenção filosófica. Tenha a humildade de estudar e perceber a historiografia artiplástica angolana e surpreender as maravilhas da engenhosidade plasticografica que podem sustentar teses mais profundas do que as que ardentemente deseja com o etonismo. Minha insistência para além de eivada de vícios de um jurisconsulto pretende colocá-lo no plano da seriedade analítica da arte angolana em busca da profunda sensibilidade do fenómeno artístico –, o desprezado é quase sempre a fonte de conhecimento mais segura (ex ore parvulorum veritas) – afim de que ao agenciar sua filosofia pelo mundo o faça de modo irrepreensível e transmita orgulho a todos nós, angolanos. Proponho-lhe, enfim, que passemos em exame a evolução das artes plásticas angolanas, através de um debate assistido e participado pelas mais variadas opiniões e sensibilidades. Seguramente, constataremos novas orientações discursivas para futuras análises, quer no domínio da estética quer no domínio da ética das artes no geral. Vale a ideia por dinamizar o pouco expressivo ambiente da crítica de arte em Angola. E provavelmente nascerá uma melhor e mais convincente sustentação para o seu muito querido Etonismo. Alea jacta est.

O ETONISMO E O RISCO DO LUGAR COMUM

NO CONTEXTO DAS CORRENTES DE PENSAMENTO
A propósito da possibilidade metafísica da proposta ética da arte de Tomás Ana “Etona”

Albano Pedro

(Primeiro texto em torno do Etonismo publicado no Jornal de Angola, suplemento Vida Cultural)

O Etonismo é defendido como a Filosofia da Razão Tolerante e desenvolvida por Patrício Batsíkama com base na obra plástica de Tomás Ana “Etona”, nos termos da qual é pretendida a ideia de que as relações humanas e sociais (incluindo as interestaduais) devem ser desenvolvidas com base no espírito da tolerância e camaradagem, salvo melhor interpretação, não havendo lugar a necessidade de ofensas de interesses do próximo. Esta corrente não pode ser vista como completa novidade senão na forma como se pretende desenvolver. Na sua perspectiva ontológica, esta corrente procura expor o óbvio e o estruturante nas relações humanas e sociais. Com efeito, desde a revolução burguesa que a Tolerância se tem tornado na chave das relações humanas e sociais. Deve-se a queda da monarquia e o surgimento do movimento constitucional a imposição da igualdade dos cidadãos (relação constitucional) e dos povos (relação internacional) como fundamento da tolerância convivencial ou relacional. Após, a segunda guerra mundial o mundo entendeu melhor a lógica da tolerância proclamando no domínio das relações entre as sociedades princípios claros e objectivos que determinam a necessidade tolerante das relações humanas e sociais, ao proclamar princípios como o da coexistência pacífica, da não agressão, da resolução pacífica dos diferendos entre outros que se tornaram na rede fundamental que suporta as relações entre os povos nos tempos actuais. Mesmo o Direito enquanto realidade normalizadora da sociedade é impregnado em absoluto pelo senso de tolerância. A norma jurídica é antes norma ética e moral eivada de toda tolerância possível, sob pena de ameaçar o justo, iusticiae. Não é por acaso que a Boa-fé – enquanto mecanismo de interacção tolerante – constitui o princípio cardeal do Direito.

Tive a virtude de elaborar uma peça crítica sobre a obra de Tona (hoje Etona) a propósito da sua exposição intitulada O ESTADO DAS COISAS que foi publicada na extinta Revista Mensagem do Ministério da Cultura então dirigida por Jomo Fortunato, através da qual manifestei a constatação sobre a mensagem nela impregnada trazida como recém-nascida na evolução conceptual do artista e no seu senso artiplástico, incluindo uma proposta ética nova, felizmente percebida por Patrício Batsíkama.

O risco do lugar-comum assenta na inovidade do conceito filosófico da obra plástica do Etona em que as propostas metaplásticas sóbrias e fundamentadas pela idade e pela visão reformista do espaço histórico e geracional não fazem nem refazem o corpus metafísico da ética que procura impor com o Etonismo. Na transparência da cortina metafísica de que se cobre esta tese se fragiliza e desventra com o desgosto de uma alma atribulada no seu estatuto de cidadão sobre as inoportunidades económicas do seu tempo e procura na subtileza da proposição filosófica a manifestação de uma revolta contra a polis (a exposição do Estado das Coisas de Tona inaugurou este evento no seu percurso estético-discursivo) recomendando a distribuição e redistribuição equitativa das oportunidades materiais e proclamando um igualitarismo exasperante através de uma constatação ilusória e paradisíaca das possibilidades de uma coexistência pacífica, por si só impossível pela natureza lopina do homem – Lupus omni lupus. Por isso, tolerância na família, tolerância na sociedade e tolerância no mundo.

O Etonismo pode inaugurar uma nova ética plástica ou artística em Angola e influenciar uma nova geração de artistas e até sobretudo a geração de políticos. Não será contudo corrente filosófica. Aliás, Tona ou Etona é personagem artiplástica de uma geração que se entremeou entre a arte politizada do pós-independência pré-republicana dos anos 80 que sobreviveu ao ajudar-se no esforço de retirar as artes plásticas dos braços fortes da ideologia política totalitarista da época e as relançou para a modernidade dos dias de hoje viabilizando uma verdadeira época de criação plástica. Na verdade o que deve ser caracterizada (chamando atenção a crítica séria e imparcial) não é a obra de Etona mas o movimento estético-revolucionário em que se inscreve a sua ascensão como artistas plástico. Neste não faltarão artistas com Tozé, Domingos Barcas, Gonga, Quissanga entre outros novos órfãos sobreviventes do esteticismo inaugurado pelo malogrado Victor Teixeira “Viteix”, sumo pontífice das artes plásticas angolanas, de quem Etona bebeu até a embriaguez. A ousadia de uma crítica séria levaria a caracterizar o actual momento das artes plásticas angolanas como um verdadeiro movimento ou corrente ética e estética cuja denominação viria em abono de todos os artistas da geração de Etona. O próprio Patrício Batsíkama apoia esta constatação ao sustentar que “quando são sucessivamente desenvolvidas pelos vários artistas consoantes diferentes maneiras cria-se escola” (vide: Etonismo e Barroco – site: nekongo.org). E de certo modo Etona não demonstra nenhuma racionalidade tolerante quando aclama os louros da sua geração para si, pela auto-proclamação principesca.

Em meio do renascimento angolano que se inaugura com florescimento político do pós-guerra é míster que as propostas baseadas em agregados científicos de influência universal – como são as proposições filosóficas – sejam ventiladas com base em fenómenos sustentáveis e conceptualizáveis compreendidos na evolução histórica da sociedade, do Estado e das várias formas de manifestação cultural atendendo a onto-génese antropopsicológica e sociológica dos angolanos em toda a sua trajectória histórica, identificando ou quesitando por especificação ou por interrogação as variáveis temporais e as variáveis intemporais com vista a determinar a sua causa determinante, se política, se filosófica, se meramente cultural.

Entendo, enfim que o Etonismo candidata-se a uma corrente política com forte pendor reaccionário quase esquerdista, circunstancialmente inconformista – o homem refugia-se no artista para manifestar-se no político – despertada pela exaustão desgastante provocada pelo passado ideológico que torturou e atrasou todo o processo de emancipação da maioria dos artistas plásticos hoje legados ao abandono institucional e procura sustentar um conceito com base numa realidade fáctica concreta emanada pelo actual modus essendi da sociedade angolana, invertendo o processo gnoseológico de causa efeito no recorte epistemológico dos fenómenos e não passa nem perto de uma proposição garantida pela imutabilidade fenomenológica própria dos conceitos filosóficos, nem mesmo quando proclamada como filosofia de acção. A realidade social angolana exposta na prática corruptiva de governação e de administração predadora de interesses públicos recomenda uma racionalidade tolerante identificada pelo mais consciente dos cidadãos, felizmente publicitada por Patrício Batsíkama. Porém, não é a essência formal nem material da sociabilidade angolana sustentadora de uma ontologia antropológica, estruturada no ser angolano como perene e como tal digna de avaliação metafísica. No plano formal temos que a estrutura jurídico-legal e constitucional é distante desta realidade fáctica e circunstancial proclamando uma civilidade tolerante através das normas de construção ética incólumes e vigorosas. Para tanto bastam princípios e regras fundamentais como o da capacidade de exercício do poder soberano do povo, entre outros. No plano material temos que o povo angolano tem a convivência estruturada com base comunitária de matriz costumeira por si só tolerante, não havendo que confundir a harmoniosa realidade das micro comunidades angolanas (kimbos) com a turbulência egocentrista da urbanidade assumida pelos grandes centros populacionais em que se estruturam os centros de decisões do Estado a partir dos quais Etona e sua pretensa filosofia procuram fundar o pensamento social pela Arte.