terça-feira, 19 de outubro de 2010

DO CONTRASTE ÉTICO AO PURO ESTETICISMO NAS ARTES PLÁSTICAS ANGOLANA

A PROPÓSITO DO PRIMEIRO ENCONTRO NACIONAL DE ARTES PLÁSTICAS

Albano Pedro*


Mesmo sem precisão historiométrica, o movimento ético e estético das artes plásticas angolanas varia entre dois importantes períodos. Isto, se afastarmos o nebuloso período pré-colonial e o não titulado ou alienado período colonial, mesmo com o meu homónimo Albano Neves e Sousa. O primeiro que corresponde ao pós-independência em que a opção política do Estado centraliza e direcciona o sentido estético (1975 – 1992) nascendo a arte “intervencionista”, “vanguardista” ou “política” de acordo com oportunidade de conveniências. O mesmo que Kitsh totalitário para Hitler ou Realismo Socialista para Estaline; e o segundo que responde a um emancipalismo individualista da estética (1992 – Aos dias de hoje). Se é certo que a Arte responde a génese cultural e ao estímulo psicossocial de um povo ter-se-á que ambos os períodos correspondem a opções sociais fundamentais na história do povo angolano.

Mas estaremos sempre diante da Arte independentemente das características de cada um destes períodos? Vale a partida que a arte é ininteligente. O sintoma desta realidade é a eterna pergunta «O que significa isto?» quando em presença de uma obra pictórica, peça teatral, composição musical ou poética. Mais. Não é temporal e como tal eterna. Atravessando com serena imutabilidade toda a existência impregnada de turbulências desgastantes, como o próprio tempo sobre a vida sinalizada pela erosão sobre a natureza ou pelas rugas no homem. A Arte é o tom superior da sobreposição da Natureza proclamando a derrota sobre o envelhecimento; sobre a finitude. E denuncia ao homem a possibilidade da vasta e misteriosa eternidade impiedosamente perseguida pelo conatus sese preservandi (instinto da sobrevivência ou auto-conservação).

A arte enquanto modo intemporal e transcendental da própria existência vital não se compadece com o dirigismo ou centralismo político. Neste período haverá certamente tudo que expressivamente denuncie o génio inventivo ou criativo do homem angolano. Menos arte. A pressão política sobre a arte no período pós-independência terá certamente levado a clandestinidade criativa o verdadeiro génio artístico e emancipado o senso artesão na artegrafia angolana no geral. Assim, será com certeza o tom reivindicador de um nacionalismo independentista na música, no teatro, no cinema, na literatura, na dança ou nas artes plásticas dos anos oitenta. A prova está em que tudo que foi produzido nesta época envelheceu como o próprio artesanato. No tempo e no espaço. Sujeitou-se ao tempo e demonstrou a sua triste e frágil imperenidade. Seja música, dança, teatro, literatura ou artes plásticas. O que sobreviveu, viveu do génio próprio da arte e é muito pouco ou de selecção difícil ou criteriosa.

Remeto-me ao passado recente como apreciador e actor das belas artes, em reflexão a uma breve, mas intensa, convivência com Tirso Amaral importante e marcante nome para galerista. O qual esvaziando garrafas de Gin e apagando beatas de cigarros um após outro, deixava no seu discurso, meio distorcido meio profundo, longe do alcance de mentalidade pouco treinada para a captação dos sinais transcendentais da Arte, a ideia de que pouco do que se produzia sobreviveria ao tempo. Mal servia para ser comercializado como verdadeira Arte. Não compreendia o consumo frenético de tanto Gin ao que relacionava com o seu intenso génio laboral. Mas percebia aquela alma como poucos dos que lhe eram próximo. Pressagiava o roteiro negro para a arte, assim rotulada, da época. Tínhamos então um ambicioso projecto: organizar uma importante obra literária sobre a cronologia das artes plásticas angolanas. Não fosse a morte que o precipitou no abismo do silêncio material tamanha obra estaria hoje a ser consumida como um verdadeiro marco na documentação das artes plásticas angolanas.

O conjunto de obras de artes plásticas que sobreviveu da época, já era Arte antes da época e mantinha-se na veia de poucos monstros, tais como Victor Teixeira “Viteix”, Zan Andrade, Paulo Jazz, Jorge Gumbe, Francisco Van-Dúnem “Van”, António Olé, Eleutério Sanchez, Augusto Ferreira, Fernando Alvim, Costa Andrade Ndunduma, Henriques Abranches, Telmo Vaz Pereira, Tomás Vista “Tetêmbua”, Álvaro Cardoso para citar alguns daqueles que atravessaram o período estético pós-independência. E por isso, um movimento artístico não foi possível na época. Nenhuma escola nasceu nem foi teorizada por isso. Apenas nomes e tendências isoladas entre as quais nascente da pintura iconográfica e pluriestética de Viteix. Escultores como Mpambukidi Nlunfidi, Mestre Bonga, Tomás Ana “Tona” (hoje Etona), General Rui de Matos e Massongui Afonso “Afó”; o ceramista Matondo Alberto ou pintores como Kabissi Remos, António Pululu, Bastos Galiano, Álvaro Macieira ou ainda gravuristas como Kidá revisitaram os seus modelos estéticos e ofereceram apuradas nuances reformistas tendentes a verdadeiras obras de Arte. Os artistas culparão certamente os críticos de arte por essa falta grosseira. Entretanto, o período não permitiu qualquer fermentação de material artístico possível que sustente um verdadeiro movimento para a época.

Mas as artes plásticas vivem também na estratificação social oferecendo a cada classe o seu auto-retrato ético e estético. A pintura antecipou-se a estratificação distribuindo diferenças modulares as diferentes percepções estéticas e renasceu em grande no segundo período. Nomes forjados pelo autodidactismo ou pela aprendizagem com variante reformista como Domingos Barcas, António Gonga, Don Sebas Cassule, Tozé, Coutinho, Quissanga, Fernando Nunes, Pedro Tchivinda superaram o dirigismo neste domínio e permitiram o surgimento de uma multiplicidade de tons e nuances plasticográficas combinando exaustivamente correntes e estilos como cubismo, futurismo, abstraccionismo, surrealismo, impressionismo, expressionismo… Há também a imposição feminina com a tecelã Marcela Costa (hoje mais galerista do que artista) ou a Clara Monteiro.

A escola Média de Artes Plásticas teve a sua contribuição. Com orientações de professores como a Filóloga Irene Guerra Marques, a Antropólaga Ana Maria de Oliveira, a Historiadora Rosa Cruz e Silva, o ceramista Matondo Alberto, o escultor Massongui Afonso “Afó”, o desenhador Francisco Van-Dúnem “Van”, o gravurista Jorge Gumbe, o pintor Salló Sally entre outros, surgiu uma nova geração de artistas multiperceptiva nos conceitos, estilos e textos plástico. No mesmo período ainda nascente, porém efervescente, da nova vaga de artistas plásticos, Lino Damião, Sebastião Eduardo “SD”, Albano Pedro (eu próprio), Mwamby Wassaky (promissor escultor revelando um surpreendente método de trabalhar o coco, agora estilista e costureiro) fundam Os Nacionalistas, que se pretende como primeira tentativa histórica nas artes plásticas angolanas de um movimento estético determinador de uma plasticografia emancipalista que combina cânones da estética africana e padrões da arte clássica, contemporânea, moderna e pós-moderna ocidental. Tendência ética e estética, aliás, já patente e identificada em muitos outros pintores, gravuristas, tecelães, ceramistas, escultores… que remetem as artes plásticas num ritmo de progressão reformista acelerado. Mais tarde juntam-se aos Nacionalistas, por identificação geracional, outros nomes como Lutandila Paxi, Zizi Ferreira, Yana Van-Dúnem, Marco kabenda, Yonamine Miguel (Yona). Com os primeiros frutos académicos da Escola Média de Artes Plásticas outros talentos se impõem. Entre eles Sabby, jovem enérgico e de entusiasmo galopante que combina elementos plasticográficos de Jorge Gumbe exponenciados pela recorrente temática da Kianda, do embondeiro e do feminino no texto plástico, também, e profundamente, explorado por Domingos Barcas. Outros artistas marcam a sua evolução em paralelo: Kabudi Ely, Kiluanji Kia Henda, Kiluanji Liberdade, Raul Silvestre, Luandino de Carvalho, Ondjaki, Lema Yuma a enriquecer a nova paisagem plasticográfica angolana. A crítica embora com presença incipiente segue as peugadas da nova vaga com textos genéricos e por vezes transplasticistas pelas sugestões imagéticas, ontogenéticas e historiográficas. Há a progressão multiestética do texto crítico de Adriano Mixinge configurando a paisagem plástica; de Jomo Fortunato cuja sonoridade textual produz uma estranha, porém interessante, simbiose ética e historiométrica entre a Música e as Artes Plásticas revelando um todo nominativo para a leitura métrica do texto plástico ou de Albano Pedro num processo de iniciação crítica tendencialmente dirigido ao eticismo plástico. Os espaços impressos são o Jornal de Angola, a revista o Chá (Associação Chá de Caxinde), Mensagem (Ministério da Cultura) entre poucas outras.

Se o primeiro período levou os artistas àquilo que pode ser rotulado como “a falência do objectivismo plástico-criativo” cujo resumo esta na irreversível auto-destruição por imperativo histórico do vector criativo viciado pela postura política dos agentes da plasticografia angolana da época, para a nova geração, o génio criativo de forte pendor liberal nasce das cinzas de um presente plasticográfico decadente e a busca de um paralelismo estético-plástico entre o Ocidente e a África assente no padrão globalizante do universo torna-se num objectivo inadiável e historicamente necessário. Os conhecimentos da História e Ciência das Artes Plásticas desencadeiam um verdadeiro êxodo intelectual determinado pela sede e fome criativa da maioria dos jovens operadores da época arregimentados pelo BJAP (Brigada Jovem das Artes Plásticas) que se impelem à linhas de inspiração afro-europeia confundindo em miscelâneas estéticas Van Gogh, Picasso ou Matisse e Malangatana ou Viteix num cruzamento simbiótico de matriz futurística que rapidamente emancipam e projectam as artes plásticas numa nova era e dimensão histórico-valorativa. Há ainda o recurso a técnicas multifacetadas e polidimensionadas baseada em combinações sincronizadas de técnicas clássicas exercendo superação compensatória sobre a técnica monodimensional e unidireccionada do óleo ou acrílico sobre tela para obras de pintura do período pós-independência ou revolucionário. Na gravura a técnica do linóleo ou da madeira é superada pelas linhas pictográficas talhadas ou projectadas em chapas de metal e outros materiais ousados. Impõe-se a ousadia temática e a estilística evolui com a morte gradual do expansionismo dirigista exercido pelos mestres detentores de ateliers e galerias sobre os aprendizes historicamente potenciados para a nova era; o artista ganha finalmente identidade própria enfrentando o indeterminismo onto-estético da nova era com um novo sentido do ser-ético e inabalável optimismo estético. Se só é Arte o que é belo e só é belo o que é sublime, a nova geração tem um sentido de missão bem mais presente; bem mais sublime: resgatar o catálogo estético-plástico angolano do lugar-comum.

Mas, a velha questão permanece insistente. Haverá uma Arte política ou social? A Arte, como procedimento materializante, não é sequer historicamente enquadrável porque perene. Não haverá lugar a cumplicidade ou parceria entre a História (enquanto movimento secular) e a Arte. A Arte não contribui, pelo menos directamente, para a organização de funções sociais geralmente quantificáveis pelas finanças públicas. As artes não compõem um sector intencionalmente produtivo com reflexos no desenvolvimento económico de um país. Tudo isso fá-lo o artesanato. É falsa a pretensão da classe dos artistas em reclamar um espaço no quadro das prioridades políticas da nação, senão quando seja por reconhecimento demissionário da autoridade que exercem sobre as artes. E o artista que fizer das artes uma base de projecção financeira e de sucesso material não só arrisca a sua despromoção para a categoria de artesão como manifestará a inversão de um processo natural. Pois, as artes vivem de uma base financeira e material anterior normalmente não providenciada pelo artista. Daí os Mecenas da Itália renascentista e os patrocinadores dos dias de hoje em sociedades organizadas. Insuflar no espírito empreendedor de jovens, cujas veias correm ansiedades de realização material, esperanças de materialização financeira nas Artes é um exercício digno de charlatães e concomitantemente pernicioso para a estabilidade das Artes. Não enriqueceram fazendo arte, gigantes desde Donatello, Botticelli, Leonardo da Vinci, António Canova, Michelangelo, Giorgione, Rafael ao Goya, Alfred Sisley, Rembrandt, Camille Pissarro, Paul Gaugin ou Emille Antoine Bourdelle e muito raro o reconhecimento lhes veio em vida, para além de muitos terem passado por verdadeiros calvários devido a marginalização pública imposta pelos regimes e contingências históricas vigentes. Foi a coragem de assumir a necessidade não material do ser-artista que transformaram os africanos como Oku Ampofo e Kofi Antubam (Ghana), Afewerk Tekle (Etiópia), Gerad Sekoto (África do Sul), Ben Enwonwu (Nigéria) e Viteix (Angola) em gigantes respeitados pelos cultores da artes plásticas ocidentais pelas propostas pictóricas de raiz africana entre os anos 30 e os anos 50 quando entraram para a Europa e convenceram, pela riqueza dos recursos imagéticos, exigentes críticos e apreciadores do Belo.

Finalmente, a Arte não cede a pressão política ou económica. Não haverá mais artistas em períodos de ditadura ou menos artistas em períodos de plena democracia e não haverá menos produção artística em períodos de carência ou mais produção em período de abundância como demonstra a variação de qualquer mercado. Nem sequer a Arte é mercadoria, se não quando já fora dos limites da posse e/ou controlo do seu autor. Vale sugerir que, o Artista é um semeador de esperanças; um sacerdote. E fazer arte torna-se num involuntário e quase irrenunciável culto ao sublime. Por isso, pretender que a arte intervenha no domínio político, económico, cultural e social, como se impôs no passado recente com a participação na mobilização ideológica e política ou com a produção de padrões das notas (moeda), é confundir o papel mediato do artista na leitura intemporal dos fenómenos naturais com a motivação do “homo economicus” escravizado pelas necessidades quotidianas e produtor de dados gráficos, imagens e ilustrações por processos artesanais ou tecnologicamente assistidos ligados a decoração, ao design e a projecção gráfica geralmente relacionados com o turismo, a publicidade, o marketing, a comunicação social e a imagem comercial com toda a sua imediaticidade consumista. Se no passado esta participação social foi forçada, hoje é impensável sequer. Que o Primeiro Encontro Nacional de Artes Plásticas tenha servido fundamentalmente para determinar a gnoseologia da Arte e criar a consciência de separá-la do artesanato perecível. O que representa um exercício de auto-consciência da classe dos artistas necessário para a afirmação de uma identidade inquebrantável e de um verdadeiro movimento artístico nacional mensurável, quantificável e catalogável nas perspectivas ética e estética dentro do contexto da evolução histórico-artística de Angola.

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* COMENTARISTA E CRÍTICO D’ARTE