domingo, 20 de maio de 2012

SALIF KEITA: A DÁDIVA NEGRA DE UMA VOZ DOURADA

Albano Pedro É quase impossível ouvir a música de Salif Keita e não se deixar perder numa floresta de recursos sonoros telúricos simultaneamente dolentes e suaves proporcionando sensações estranhamente agradáveis em que se percebe uma intenção analgésica com a suavidade que visita um ouvido forçado a atender sem resistência ao apelo da lírica extasiante, sobretudo quando se tem uma profunda sensibilidade para a música de tendência erudita e se tem alguma percepção dos códigos musicais de raiz africana. O tempo pára e com ele a turbulência do momento. E então uma África que se desenha melódica aparece e o recolhimento espiritual acontece. Haja tacto, haja vontade de viver uma dimensão pouco habitual da cultura musical africana e haja sobretudo liberdade de ouvir a própria liberdade dos sons e melodias que perfilam com uma incrível harmonia na conversa dos múltiplos instrumentos musicais. É tudo leveza, é tudo profundidade e ainda por cima tudo soa natural na voz e na sonoplastia. É o que se passa quando somos visitados pela voz musical de Salif Keita. Não é por acaso que é considerado, pelos mais exigentes apreciadores da música africana, como: “ a Voz de ouro da África”. A partida a música na voz de Salif Keita nos obriga a uma equiparação compulsiva com a de Ismael Lo ou a de Lokua Kanza. Seja pela sensibilidade telúrica da voz que se entremeia numa melodia de evocação profunda enraizada nas memórias remotas de uma África mágica, fantástica e mística ao mesmo tempo humanista, solidária e espiritualista, seja pela ousadia na afirmação de uma identidade musical particular e por isso única. É verdade que partilham a origem afro-francofona, mas cada um, a sua maneira, foi para além das possibilidades musicais das realidades culturais em que nasceram para descobrir um modo de realizar a música muito peculiar em que a experiência técnica, a criatividade, o talento e a vocação se misturam numa linguagem muito profunda que traduz a essência de uma África dolente, sofredora e saudosista de tempos não vividos na modernidade. De comum têm ainda mestria na composição meticulosa das músicas e a exploração infinita dos recursos sonoros e dos instrumentos musicais que os colocam no top dos melhores mestres da música africana de todos os tempos. Mas, naquilo em que Ismael Lo e Lokua Kanza conseguem colocar o timbre da musicalidade com a voz através de uma laboração musical moderna e bem conseguida, Salif Keita acrescenta uma melodia muito peculiar alcançada pela particularidade do Kora e outros instrumentos musicais de uma África tradicional e misteriosa. Salif Keita nasceu no dia 25 de Agosto há 63 anos na cidade de Djoliba (região de Koulikoro) há 25 quilómetro de Bamako capital do Mali. A sua vocação musical o levaria para a classe de “griots” (que é a classe social em que se nasce cantor) não fosse o sangue real de que descende identificado com o do fundador do Império Mali, Sundiata Keita. Se Ismael Lo e Lokua Kanza preferem transmitir as suas sensações musicais em línguas africanas únicas, Salif Keita o faz da mesma maneira em Mandinga, mesmo quando se atreve a misturar outros recursos linguísticos como o francês que predomina como língua estrangeira nalguns temas. Ao longo da sua carreira musical Salif Keita produziu cerca de 14 álbuns musicais e a sua musicografia pode ser determinada em fases e etapas que fixam momentos de reformas evidentes na sua maneira de criar e fazer música. SORO (1987), KO-YAN (1989), DESTINY OF A NOBLE OUTCAST (1991), FOLON (1995), RAIL BAND (1996), SEYDOU BATHILI (1997), PAPA (1999), MAMA (2000), SOSIE (2001), MOFFOU (2002), THE BEST OF THE EARLY YEARS (2002), REMIXES FROM MOFFOU (2004), M´BEMBA (2005), THE LOST ALBUM (2006). Salif Keita é produto da sua própria existência por si só instável. Ao nascer albino começou por ser ostracizado. Na tradição do seu povo isso significa azar e por isso portador de alguma maldição. Se verdade ou mentira, o facto é que Salif Keita viu tanto a sua estabilidade geográfica quanto a sua trajectória musical visivelmente atingida por mudanças constantes. E isso mesmo é também sensível nas várias transformações que sofreu como músico do ponto de vista estilístico. Do lugar em que nasceu cedo mudou-se para Bamako onde começaria a sua carreira musical com os Bamako Super Rail Band em 1967. Mas tarde se juntaria aos Les Ambassadeurs com o qual viria a fugir para a Côte D’ Ivoire na sequência da instabilidade política do seu país. Nessa nova paragem a banda, que viria a chamar-se Les Ambassadeurs Internationales, conquistou o respeito do público e teve muita fama nos anos 70. Em 1977, Salif Keita recebeu o prémio National Order da Guiné Conakry, Ahmed Sekou Touré. Em 1984 Salif Keita mudou-se para Paris. Ao longo da sua rica e suave carreira musical é fácil descobrir os temas que fazem a marca do cantor. Alguns deles que identificam facilmente Salif Keita como Yamore, Iniaglege, Katolon, Souvent, Moussolou, Ana Na Ming e Here são verdadeiros monumentos em homenagem a sua fluida inspiração e aprimorada técnica musical. No Álbum MAFFOU podem ser encontrados todos estes temas. O que nos permite a ousadia de ver e perceber o período de amadurecimento de Salif Keita, em que o retorno as raízes o separam entre a fase da acomodação nas bandas musicais que fizeram a sua fama mundial e a carreira a solo. Em YAMORE Salif Keita é emblemático quanto a mestria que dele se exige. Faz questão de rechear a sua melodia com a voz mágica e cativante da dama dos pés descalços (Cesária Évora) que empresta o seu crioulo cabo-verdiano a poesia romântica elaborada em Mandinga por um Salif Keita perdido em lágrimas em busca da sua amada. A combinação das duas vozes é do melhor que se pode conseguir para homenagear a longa carreira musical deste cantor. O que transforma este tema num verdadeiro cartão de visitas para quem entra em contacto com a música de Salif Keita. A marcha é suavizada por uma lentidão sequestradora, entrecortada por uma salada instrumental bem cadenciada, onde a estética sonora e a métrica musical reforçam a beleza da letra que pontifica a voz melódica de Salif Keita. Em INIAGLEGE a guitarra solo surge ostensiva. Ela soletra as notas musicais ao ouvido. Oferece a oportunidade de se ter a noção da duração do tempo de cada nota permitindo uma exposição de talentos numa infinidade de segundos até dar lugar a voz seca e solitária de Salif Keita. Daí em diante a combinação da voz e da guitarra revelam uma espantosa capacidade e uma patente experiência na vivência instrumental com a música de um Salif Keita maduro e convincente. Não há coros nem andamentos rápidos. Durante a curta-longa peregrinação sonoplástica Salif Keita desabafa com a combinação dos instrumentos que ele próprio aprecia e vivência com a alma até deixar-se desmaiar no fim contra a nossa visível vontade numa altura em que não se quer largar os braços sonoros do cantor. Com KATOLON, Salif Keita se apresenta como um verdadeiro griot. O kora se insurge com a mesma autoridade em que acompanha os griots. Salif keita, está preocupado em desabafar e com a voz suplicante conta uma história sem pressa. Fala mais e solicita a companhia da sua destreza em manipular os sons. Os recursos líricos fluem suavemente da combinação habitual entre instrumentos tradicionais e modernos onde o coro feminino e o tempo musical fazem uma paisagem lírica extraordinariamente bela. MOUSSULOU é um monumento de sonoplastia instrumental de grande labor estético em que um coral feminino apela a alma de um Salif Keita cauteloso quase perdido em lamentações. Um conto ou uma história a medida do modelo griot de anunciar as vivências do seu tempo. MCK, rapper angolano, que nos honra internacionalmente com o seu underground, fez recursos a essa melodia para tema sonoro de fundo para uma das suas letras. A melodia é de uma cadência de alternância curta e contínua porém suave e ritmada. SOUVENT é seguramente o tema mais cauteloso produzido por Salif Keita. Parece um poema trovado com um Kora intermitente que teima em forrar um sofrimento infelizmente ostensivo. É um tema muito curto e o que encanta nesta muito bem conseguida música fortemente melódica é o modo como Salif Keita nos leva ao fim dela com ao ritmo arrebatador do Kora como querendo levar-nos para um embalo cavalgante ao infinito que desaparece no horizonte através do ouvido. Aliás, Salif Keita como todos os bons mestres que combinam uma voz mágica e uma incontestável capacidade de explorar os instrumentos musicais procura um diálogo interessante em que a voz dá lugar a uma peregrinação instrumental de uma arte refinada. ANA NA MING é de uma força sonora evocativa sonora capaz de ressuscitar sensações fortes. Mesmo sem entender a letra percebemos uma Salif Keita a lamentar de alguma sorte que nos identifica a todos com mágoa e tristeza. Aliás, a musicalidade de Salif Keita fala da mesma maneira para qualquer um sem tradução linguística ou idiomática. HERE começa com um chamamento sonoro produzido por uma guitarra solo bastante autoritária que se isola no ouvido até dar lugar a cadência ritmada de uma mistura instrumental que faz lembrar o Kora e alguns outros instrumentos em execução ao mesmo tempo que se impõe um coro feminino melódico. Salif Keita segue a substituir o coro em companhia ritmada da mesma cadência suave do Kora. Um ano antes Salif Keita lançara SOSIE onde se percebe a intenção de mostrar ao mundo a sua competência musical. E de facto, foi a razão que o levara a emigrar para Paris. Grafa os títulos dos temas em francês. É ousado na estilística. Mas percebe depois que não era necessário lutar pelo nome. Este já se tinha afirmado por si só. Tinha marcado uma personalidade própria que a própria alma exigia como marca. Reflecte uma musicografia que o revela a si e a sua história. Regressa espiritualmente à terra natal. Esquece a necessidade da fama mundial, faz-se griot e com MAFFOU Salif Keita está de volta àquele período solitário em que tem que dar com a sorte de ser albino com todos os ingredientes anti-sociais que envolveram a sua história pessoal desde a infância. Salif keita percebe que nunca devia fugir a sua própria história para se refugiar na música e na peregrinação pelo mundo. Inspira fundo e decide enfrentá-la finalmente. Procura justificações sem resposta e apela pela necessidade de se refugiar no amor e na solidariedade. Acima de tudo Salif Keita faz uma busca sôfrega pela harmonia e pela paz para uma alma atormentada. Por isso Salif Keita não canta para o público. Antes, dialoga insistentemente consigo mesmo com o testemunho da destreza que liberta através dos instrumentos e faz um momento musical para além da sua própria realidade. Assim se percebe que MAFFOU revele um momento musical sublime, e por isso transcendente, em toda a carreira artística de Salif Keita.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

LOKUA KANZA

ENTRE A GENIALIDADE DO ARTISTA E A EXUBERÂNCIA MUSICAL DE UM TALENTO SEM IGUAL


Albano Pedro




Quando se escuta a música de Lokua Kanza, mesmo quando se sabe que é um congolês, tem-se impressão que é um rebelde musical que se insurgiu contra os padrões da musicalidade da sua terra que invadiram o mundo com uma característica peculiar. Mas, Lokua Kanza é um cantor que busca o Congo Democrático, seu país natal, de forma sôfrega em toda sua paixão artística e recursos sonoros ou vocais. Essa aparente rebeldia coloca-o num anonimato incidental porque não é conhecido entre os seus compatriotas viciados em ritmos desencontrados com a mestria de uma educação musical clássica como a que esteve sujeito. Em meio as referências de Rochereau, Mbilia Bel ou Francó nos tempos passados ou de Papa Wemba, Kofi Olomidé ou Werrason, nos dias de hoje, Lokua Kanza procurou por uma educação musical clássica para seguir uma caminhada orientada para harmonia dos sons e da alma que o levariam a trilhar uma vereda impar e assumir uma musical vanguardista de cariz internacional sem quaisquer marcas da alienação cultural. Por isso a sua música não se confunde com o sokouss que sugere danças como ndombolo ou kuassa-kuassa tão pouco se afasta das raízes melódicas africanas.

Lokua Kanza nasceu em Bukavu, em Abril de 1958. Aprendeu a tocar violão como um garoto qualquer desenvolvendo a sua paixão musical desde então. Foi no Conservatório de Kinshasa que aprendeu teoria musical, a harmonia e a composição. O seu primeiro disco veio em 1993 e logo elevou-o a categoria merecida de uma das maiores referências da música de África. De Lá pra cá as suas músicas veiculam a partir de mais de 5 álbuns (O recente é Nkolo, 2011) se têm tornado em verdadeiros monumentos da destreza musical e da execução profissional harmonizada por um rigor estético musical muito raro na musicografia africana moderna. Hoje com credenciais que o permitem explorar uma rítmica multiforme e plurinacional que atravessa a África e o Brasil pelo mundo, Lokua Kanza insiste em manter a sua identidade através da língua nacional Lingala com a qual musica as melhores obras de arte que se lhe reconhecem. Esse vício nunca o abandona mesmo quando faz recursos linguísticos e idiomáticos diferentes há qualquer coisa que se fala em lingala para deixar claro quem toca. Quando questionado se esse apego teimoso não retira a possibilidade de elevar-se no mercado musical internacional. Simplesmente responde que quando se canta com a alma todos compreendem. E efectivamente acontece com as usas músicas. Não é necessário compreender a letra de Lokua Kanza. As melodias por si só traduzem. E traduzem directamente para a alma atenta que mergulha embebido na sua sonoridade muito peculiar. Lokua Kanza vive da música e para a música e assim se tornou num músico completo. Daqueles que deixam um marca característica em tudo que faz como música. Nesse ambiente é impossível uma paixão eterna com esse fazedor e refazedor de sonhos do qual destacamos Meu Amor, Moninga ou Zamba, para citar e apreciar os recursos estilísticos e estéticos de algumas das verdadeiras obras de arte da música contemporânea nascidas do talento deste africano de origens profundas.

Meu Amor desperta a paixão por uma terra nova (o Brasil em que vive) onde a saudade pela terra reclama a sua parte numa alma cansada de andar pelo mundo em busca do nunca na perfeição da alma e da poesia musical. A saudade flui através de bossa-nova e outros recursos estilísticos num lingala de feições líricas que se perde na alma numa suavidade agradável. O Amor pela terra abandonada num passado inocente é personificado e a arte flui espontaneamente de um Lokua Kanza cheio de energias sonoras e recursos melódicos que se confundem com ritmos brasileiros. Moninga (amigo) é uma homenagem interessante por despertar o lado sublime das relações humanas: a amizade. É uma saudade cantada para um amigo falecido cuja morte tomou conhecimento antecipado devido a uma doença de letalidade irreversível. O amigo morreu e a canção nasceu para eternizar uma solidariedade dilacerante que foi incapaz de o manter entre os vivos. Lokua Kanza recorda o amigo com pesar. Mas ainda resta tê-lo presente numa canção enquanto a alma. Esta, leva o peso da dor e do sofrimento causado pela partida indesejada à eternidade. Aqui a voz dolente de Lokua Kanza compete em perfeição lírica com a sonoridade multidisciplinar que a orquestra produz para embalar um ouvinte exposto a dor artística da música. Em Zamba a multidisciplinaridade é elevada ao extremo da execução musical. A vocalidade multiforme mistura-se a sonoridade instrumental num compasso cadenciado por uma métrica sonora bem conseguida. Torneia a voz numa plasticidade ilimitada e deixa-se correr aparentemente desorientado numa floresta de melodias e sons de sublime espiritualidade numa linguagem bem personalizada. Lokua Kanza parece explorar todos os recursos que a sua capacidade artística sugere dentro de um desespero de quem quer colocar ao consumo sôfrego de quem acompanha. Lokua Kanza deixa os instrumentos dialogarem no ouvido apaixonado do ouvinte até a exaustão para de repente configurar-se uma clareira vocal em que a voz melódica parece despir-se dos compromissos assumido com os instrumentos ao longo da canção.

Diz-se que Lokua Kanza distingue-se pelo som, soulful folclórico. Mas a verdade é que ouvir Lokua Kanza é estar diante de uma feira de recursos melódicos inimagináveis que deram estatuto a músicas que estão no topo da fama mundial. Quando o mundo se mistura em vulgaridades rítmicas em que os temas recorrem-se entre o amor e a traição, Lokua Kanza encaminha seus admiradores em líricas que clamam por um amor divino, uma amizade humanizante ou uma saudade dilacerante num cardápio de perfeição musical onde as melodias são iguarias sublimes. Porque em Lokua Kanza é tudo harmoniosa serenidade musical que dispensa a dança para envolver o espírito num espiral de fantasias melódicas indescritível. De uma coisa estejamos certos: perder oportunidade de contactar com a sonoridade e vocalidade musical de Lokua Kanza é sem dúvidas um desperdício que não se aceita em toda uma vida de cada um de nós, amantes da boa música.